Campereada
Sob o sol “a pino”, desses que fazem a tarde chiar na própria poeira, eu vinha costeando a sanga no lombo de um baio escarceador, daqueles que conhece o campo mais que muita gente. Os cuscos iam de língua caída, assolhados pelo calor, e a mutuca batendo — dessas visitas que não pedem licença. Na frente, uns terneiros retouçavam rumo ao parador, e eu apenas bombeava enforquilhado, guiando a tropa com o jeito que a lida ensinou.
Quando um novilhão abichado apartado do resto, certo que pedia o sovéu torcido com o instinto que a lida talha na alma. Dom Ernesto logo apeou e sacou do cano de bota o frasco de creolim; o Preto, firme, pressentindo o peso do ofício, segurava o animal rente ao chão. E ali, entre o mugido crescendo na sesmaria e o pó suspenso feito névoa de suor, se erguia mais uma página desse livro campeiro que a gente nunca termina de escrever.
A lida pedia boca, e o campo respondia. Quero-queros gritavam como sentinelas de trincheira, apartes se davam e os laços iam e vinham reboleando com a precisão de quem aprendeu com o vento. A campereada se formava quase “solita” era só acompanhar o compasso da vida xucra.
Lá adiante, no empedrado, o Leca já cucharreava, preocupado com a brasina terneira com olho cortado, jeito de quem pede cuidado. Um doze braça voou da mão do Florêncio, certeiro como reza de mãe, e mal se apertou, já vinha o grito: “Pega da cola, Juvêncio!”, rachando o ar feito talho de faca nova.
No “finalzito” da tarde, o campo respirou fundo. Voltamos pras “casa” num “trotezito” largo, daqueles que vão desenrolando uma rica prosa sem que a gente perceba. A luz se desfiava em fios dourados pelos varzedos da querência e, no galpão, o velho ritual chamava: desencilhar, soltar a cavalhada, deixar o suor virar lembrança. E quando o mate passava de mão em mão, a peonada toda, entre risos e causos, ajeitava a alma, porque é assim que o campo cura os dias: com trabalho bruto, prosa aberta e um amargo bem cevado.
...Estiro o sovéu torcido
Nas aspas do novilhão
Que está abichado
Bem acima do garrão
Dom Ernesto apeia
Com o creolim na mão
O preto sujeitando
O animal pelo chão
A lida pede boca...
Pra “juntá” a gadaria
Exalam-se mugidos
No lombo da sesmaria
Quero-queros em alerta
Apartes e esbarradas
Os laços reboleando
Forma-se a campereada...
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